quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Seria ela ou outro alguém?



Era exatamente 4:46 da manhã quando ela pulou da cama como um gato descoberto pelo cachorro.
Sua mãe abria a porta do quarto pra dizer que seu pai estava com dores muito fortes no pescoço e que estavam se preparando pra ir pro hospital. Sem titubear, trocou o pijama pelas primeiras calças e camiseta que encontrou, pendurou os óculos no rosto livre dos cabelos por um terrível rabo-de-cavalo e saiu.
Sentada no banco de trás do carro, guiado pela mãe que fez questão de impedí-la de chegar ao volante reclamando que sua direção era rapidamente perigosa, gastou o trajeto até o hospital pensando nas coisas que perguntaria ao residente que estaria lá no plantão com cara de sono e nadinha interessado na saúde daquele mais-um que ali chegaria. Dores na nuca e em todas as juntas era um quadro alarmante pra um senhor cujo amigo havia sido perdido há dez dias para um quadro de septicemia agudo que chegara até seu sistema nervoso central.
Carro estacionado, ficha preenchida, ouviu apenas essa frase: "Só pode entrar um acompanhante. Quem será? A senhora ou ela?" Bom, sabia que ela era ela mesma. Claro que, acostumada ao terceiro ângulo de muitos triângulos, sabia, também, que a acompanhante não seria ela. Sentada no sofá da sala de recepção, dividiu-se, nos minutos seguintes, entre ler (o livro estrategicamente colocado na bolsa pra emergências), rezar (pro doutor-residente ser alguém que tivesse um pai adorável) e pensar (sim, como toda boa geminiana ela é capaz de fazer tudo isso ao mesmo tempo e bem-feito):
"Seria ela, certamente, se a querida mãe não estivesse presente.
Seria ela, se tal fulana não tivesse aberto as pernas sem nenhuma outra consideração mais humana.
Seria ela, se o mundo fosse mais feito de dois pontos lineares ao invés de três pontos angulares.
Seria ela, não fossem tantos pudores amontoados num só espírito por vidas a fio ou se não existissem tantos medos e pavores a rodearem um coração no estio.
Seria ela, se os romances tivessem sido trocados, de vez em quando, por outros olhos apaixonados.
Seria ela, se as paisagens bordadas ponto a ponto sobre o tecido em seu colo tivessem sido plantadas em um verdadeiro solo.
Seria ela, se os minutos de sonhos trançados na roca e no tear pudessem ter criado um novo lar.
Seria ela, se os seus ouvidos e coração, emprestados para acalmar o próximo em aflição, tivessem alcançado outro alguém vindo em sua direção.
Seria ela, se deixasse de abraçar árvores e ouvir vento na busca de algum alento.
Seria ela, se não teimasse em esperar a chegada de outro olhar... a escrever, a respeitar, a bordar, a cultivar, a ler, a estudar, a tramar, a ajudar, a compadecer, a  temer, a se esconder, a falar..."

Mas, vem cá... será que seria mesmo? Porque... quem seria ela se não fosse o que sempre foi, fizesse o que sempre fez, sentisse o que sempre sentiu, pensasse o que sempre pensou, risse do que sempre riu, chorasse pelo que sempre chorou?

Seria ela ou outro alguém?

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