domingo, 27 de março de 2011

Venho aqui me despedir e dizer...

Nossa ELAM nasceu para ser uma escola de artes, das melhores. Mas não conseguia ser apenas isso... Não. Essa escola, que surgiu do sonho de uma pessoa, nosso amigo e mestre, passou a ser o sonho de muitos outros que ali encontraram um lugar para se conhecer e se reconhecer. Foi um local de livre expressão onde descobrimos em nós mesmos os dramas, as comédias, as tragédias, as dúvidas, as vilanias, os amores, as dores, os risos e as lágrimas... Foi, enfim, o espaço onde nos deparamos com a vida cantando, falando, escrevendo, dançando, ouvindo...
Suas paredes foram erguidas com nossos braços unidos, suas portas foram os nossos sorrisos de boas vindas e, com os pés no chão, caminhamos juntos em busca do melhor de nós mesmos, sempre esperando ter ao nosso lado muitos daqueles que compartilhassem de nosso ideal de cultura, vocação e amor por tudo o que fazíamos em nossa Escola.

A árvore e eu. A árvore ou eu?

Era uma vez uma pequena mudinha que estava ansiosa para descobrir-se fora daquele pequeno saquinho preto que guardava suas delicadas raízes, impedindo-as de encontrar um solo que a fizesse enxergar-se grande como todas aquelas que lhe pareciam ser parentes próximas. Chegando finalmente o dia em que seria colocada no chão, sentiu-se transplantar para um espaço amplo, bem em frente a uma casa de muro baixo por cima do qual poderia acompanhar o dia-a-dia de seus cuidadores, ao mesmo tempo em que poderia distrair-se controlando o vai-e-vem dos carros e dos pedestres da rua do outro  lado a qual era pequena, sem movimento, mas que passava bem em frente a um clube que sempre se agitava aos finais de semana, com a chegada do sol e da folga merecida dos associados.


A seiva que corria em seus pequenos vasos era capaz de distribuir o alimento trazido da terra com a água que lhe era oferecida quase que diariamente. Suas raízes estendiam-se cada vez mais e ganhavam força, sustentando o caule que crescia em altura e diâmetro, dando-lhe forma e indicando que ela seria mais uma daquelas fortes, altas e frondosas. Tudo que ela poderia esperar de uma boa árvore.


Com os meses e anos correndo, viu seus galhos esticando e cada vez mais originando ramos que se enchiam de folhas miudinhas, numerosas, verdes-brilhantes, que não se esqueciam de aparecer desde o mais firme até o mais fraquinho e distante. Nada em seu desenvolvimento lhe passava despercebido, pois era uma festa notar-se grande, capaz de receber em si os pássaros que, apesar de não encontrarem nela frutos que os alimentassem, ali sentiam-se à vontade para formarem seus ninhos ou pousarem seus cansaços. Todos os dias, amanhecia e adormecia na algazarra de cantos que se espalhavam principalmente na época das flores amarelas que ela via enfeitando toda sua vasta cabeleira. 


O tempo foi passando e o muro baixo foi trocado por um outro bem mais alto de maneira que a casa da qual ela era parte não mais podia ser acompanhada. Eram agora duas coisas separadas. Também o solo onde havia sido plantada se transformou em uma larga calçada de pedrinhas amarelas e azuis e ao seu redor foi colocada uma pequena cerca, um murinho que lhe reservava o direito de alguns palmos de terra. Ainda bem que suas raízes estavam firmes bem abaixo disso. A nova gola apertava apenas um pedaço de seu caule, ali embaixo, como um sapato novo nos pés de alguém que andou descalço por toda uma vida. Mas o céu ainda estava lá em cima, bem onde também se encontravam suas folhas, suas flores e seus pássaros.


A rua estava muito mais movimentada. Carros mais rápidos e pessoas mais apressadas agora passavam sem poderem ser contados, controlados ou escutados. As caras estavam fechadas e a alegria da vizinhança já não era mais a mesma. Poucas pessoas apareciam no clube. As casas ao lado da sua foram gradativamente sendo substituídas por lojas e, de repente, quando os cabelos daqueles que a trouxeram ali embranqueceram, ela começou a entender-se mal vista.


Repetidamente, algumas mesmas pessoas começaram a visitá-la com frequência para cutucar o grande buraco que havia se formado em seu caule. Mas eram coisas da idade! Colocaram ali uns líquidos e depois uns pós, substâncias que lhe causavam um incômodo, uma sensação esquisita de pânico. Descobriu que isso estava acontecendo porque alguns insetos haviam aproveitado o caminho aberto por suas raízes para invadir a casa de seus benfeitores. Eram cupins que, aos poucos minaram suas barreiras e a usaram para alcançar seu objetivo único de sobrevivência: o alimento lá do outro lado do muro.


Então, ela, a ávore trazida há muito anos para embelezar o caminho, era agora responsabilizada por alguma coisa que nunca havia imaginado ou pretendido. Ao colocarem ali suas finas raízes, seus plantadores não se preocuparam em pensar no seu desenvolvimento nem na necessidade de orientarem suas longas e fortes raízes que, ao crescerem, iriam longe buscar a vida que seria transformada em folhas e flores. Não. Eles, que deveriam, não olharam para o futuro. E o futuro se transformou no hoje em que as portas e os armários de madeira foram destruídos e as paredes foram infiltradas.


E nesse futuro tão presente ninguém mais conseguia olhar para ela e ver sua sombra ou suas flores amarelas de primavera decoradas pelas aves felizes que ali continuavam a desfrutar de tranquilidade. Ela passara a ser a causadora de um problema que sozinha não podia ter evitado, pois a natureza só havia lhe ensinado a ser ela, uma árvore. Entendeu que isso não seria suficiente para garantir-lhe a existência até cumprir sua jornada como suas antepassadas. Seria uma questão de tempo seu corte e a eliminação de suas famigeradas raízes. Uma surpresa traiçoeira que atravessaria seu caminho, independente de tudo aquilo que pudesse explicar, se pudesse ser entendida. As aves, o vento, os pedestres, todos passavam por ela, olhavam para ela, mas ninguém podia sentir ou dividir esse medo, a angústia de esperar a serra passar através de seu caule.


Ninguém, a não ser alguém que havia se transplantado e permitido que suas raízes se instalassem em pouco tempo num solo que considerava fértil. Esse solo era ali, numa escola bem do lado de seus raminhos mais distantes. Seguindo o exemplo da verdadeira árvore, as raízes humanas que se desenvolveram procuravam tirar de seu canteiro  muita alegria, estimulando galhos firmes a receberem com carinho e honra os muitos amigos que cantavam por entre as cuidadas flores que se esforçavam pra enfeitar e vibrar o ambiente com a melhor das intenções. Da janela no ponto mais alto da tal escola, esse alguém também mirava o céu agradecendo a oportunidade de existir ali e de repartir cada um de vários dias com aquela velha árvore frondosa, cheia de energia e de exemplo.


Algumas raízes continuam lá, olhando para a rua, para os pássaros e para o céu azul. Outras não.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Ir, voltar, ficar, sair, voltar, ficar... Escolhas e exemplos.

Desmontando a barraca de feira hoje à noite eu consegui brevemente viajar pelo espaço de alguns anos e rever os passos que demos juntos. Brigando, guerreando, nos fuzilando com olhares e palavras, mas sempre juntos.
O amor nunca foi declarado em nossa família como sempre acontecia com as broncas, as cobranças, as expectativas, enfim, as coisas não boas. Mas sempre estivemos estranhamente juntos. Talvez unidos por um compromisso tatuado em nossas almas, sempre escolhemos voltar, ainda que dificilmente declarássemos nosso arrependimento em palavras mais do que em ações.
Eu sou a pior representante da família para lembrar de alguma coisa do passado, mas ao acumular o sentimento de muitos acontecimentos e tentativas nesse caminhar, acho que posso me dar o direito de escrever isso aqui. Sim, pois eu sou responsabilizada por muitas das coisas que levam a família pra lá e pra cá. Quase sempre divido esse luxo com a minha mãe, mas quando ela se revolta, eu sobro sozinha nessa fogueira.
Desde o dia que tive de remoer minha culpa porque um dia, lá atrás, ela abriu mão do direito de abandonar meu pai por uma briga e um desaforo, comecei a perceber esse movimento entre pai, mãe e filho: o tal triângulo que minha Alavanca sempre me lembra e do qual ninguém aqui em casa foge.
Bom, mas voltando à minha viagem no tempo eu pude me ver, com essa mesma família que não se desfez por minha causa, pequena em companhia de meu irmão, viajando entre as diferentes cidades toda vez em que meu pai-bancário era transferido para um cargo e um lugar novos. Éramos filhotes e nem pensávamos em escolher nada (como lembrou muito bem minha amiga alicevia) e assim parecíamos ciganos entre 1971 e 1978. Nessa época víamos meu pai voltar pra casa, mas, como costumo ouvir de minha mãe, não era, assim, por opção dele. É verdade...  ele chegava sempre bravo e acontecia a maior briga. Daí, hoje sei que ele voltava por obrigação, cobrança, necessidade... Mas consideremos a ideia de que ainda que preferisse os amigos, o baralho, a cantoria, os churrascos e a bebida, ele voltava. Era uma escolha. E um exemplo também.
Em 1978, quando chegamos à cidade grande e meu pai se fixou na central do banco, nós deixamos de ser nômades, mas ele continuou a viajar em função de seu cargo. Contudo, agora ia sozinho. Todas as noites, nos arrumávamos e íamos buscá-lo na estação de trem com tanta a alegria que o abraçávamos como se ele tivesse passado dias fora de casa. O mesmo acontecia quando voltava de ônibus e os encontros acabavam numa lanchonete, no carrinho de cachorro quente ou na doceria onde tinha um quindim delicioso. Tudo se incrementava quando as voltas demoravam sete, 10 ou 15 dias para acontecer. Ele sempre voltava. E agora, não sei se pelo curto intervalo que permanecia em casa ou se pelo gosto de ter-nos todos ali, ele piscava diferente, ensinava diferente, cobrava diferente, mas sem declarações. Era um hábito que estava se definindo. E um exemplo também. Nesses anos, éramos uma família bem-sucedida, morando em uma área nobre de uma grande cidade, com boa escola, cursos variados, roupas, viagens, enfim. Tínhamos muito pra ser nada. Era uma questão de escolha.
Com os anos, veio a faculdade e, como a filha mais velha, eu fui a primeira a sair de casa. Saí, fui morar mais de 400 km de distância, na cidade de meus tios e meus avós, mas a cada oportunidade de um feriado qualquer, nada me impedia de voltar pra casa de trem, carro, carona, sei lá. Eu rejeitava qualquer convite diferente porque nada me parecia melhor que minha família, as reclamações de meu pai, a conversa com minha mãe e até os ciúmes de meus irmãos. Era um exemplo que foi aprendido. Nesse período éramos uma família em estudo e quem voltava era eu. Era uma escolha.
No final da faculdade, a família quase deixou de ser porque minha mãe, mesmo sem querer, quase nos deixou por causa de uma cirurgia mal feita e mal remendada. Foram muitos dias em um estado preocupante que até chegou ao coma, mas ela resolveu voltar. Talvez porque meu pai nem saísse de perto. Foi uma escolha.
Dali alguns meses, meu pai se aposentou e decidiram vir pra cidade onde eu estava prestes a terminar a faculdade, uma vez que era a cidade onde ambos nasceram, onde tínhamos meus avós, enfim, as raízes deles. Era também uma volta. Turbulenta, tendo em vista que estávamos acostumados a ir e voltar em intervalos longos. Não foi fácil porque teria que ser uma escolha em conjunto e simultânea, onde havia muito a ser controlado e muito a não ser. As brigas mudaram de tom e de frequência, piorando as relações, mas decidimos voltar a ser uma família. Então, eu já havia me formado e estava estagiando em outro lugar distante uns 210 km de casa. Sem, carro e com um ônibus que passava por ali a cada 15 dias, eu voltava pra casa pontualmente até o dia em que fui libertada do sacrifício de estar lá. Lembro-me que passava noites em claro vagando pelos caminhos escuros de uma fazenda pensando na família que estava longe de mim. Não foi bem uma escolha ficar, mas foi uma benção voltar.
Meu irmão, que havia decidido ficar pra trás na vida mais badalada da cidade grande, decidiu largar tudo e se juntar a nós. Ainda que seus motivos tenham sido mais interesses que sentimentos, consideremos que ele voltou por escolha própria. Empurrados por esse irmão, nesse momento nos transformamos em uma empresa familiar de slides, monografias, teses, traduções... Trabalhávamos de dia, de tarde e de noite, durante a semana e de final de semana, sem férias e sem feriado, mas juntos. Brigando, nos fuzilando, mas juntos. Cada um dentro de sua função: montador, escritor, tradutor, revisor, administrador, controlador... Nesse espaço meu irmão decidia sempre sair e quando voltava era sempre um problema, uma discussão porque ele voltava pra casa não por opção, mas por comodidade, pois não se importava com ninguém além dele mesmo. Mas ele voltava. Ao mesmo tempo, eu estava no mestrado e voltava pra casa todo final de semana. Rodava 218 km pra ir e 218 km pra voltar pra poder trabalhar quarenta e oito horas seguidas antes de ser reconduzida pela minha mãe até a cidade do estudo. Foi assim até alcançar o título.
Nem bem havia agradecido a Deus porque voltaria pra casa definitivamente, recebi o desagradável convite pra ser professora no Paraná, 230 km longe de casa. Fui desesperada cumprir a obrigação de ser alguém profissionalmente e ainda que tivesse encontrado lá pessoas maravilhosas, quase uma nova família, não havia nenhuma dúvida: todas as sextas e segundas eu atravessava 230 km pra poder ir e voltar de casa. Nada me segurava. Era uma escolha mais o exemplo que aprendi. Tínhamos um pedaço de terra e a cada final de semana nos juntávamos pra plantar mato e árvores e depois regar tudo.
Isso se repetiu a cada sete dias durante um ano e meio, época em que meu irmão, perdido em seu egoísmo e em seus medos, foi expulso de casa e daí não podia mais voltar. Então, ele resolveu que precisaria se ausentar. E foi embora. Viajou muito e ficou mais de dois anos sem voltar. Ligava quase todos os dias e era como se pudesse entrar em casa pelo telefone, mas não voltava. Trocou a volta pelo sucesso que sempre quis ou precisou. Eu fui demitida e mais uma vez libertada pra poder voltar. De novo não havia um dia em que não sonhasse com minha família. Eu voltei, mas agora tinha um irmão a menos.
Juntos, decidimos sair da cidade e mudar para o sítio. Do nada, nos tornamos sitiantes morando em uma casa de madeira pequena e sem forro. A melhor casa em que moramos, pois pudemos viver a simplicidade sem pobreza. Só por escolha. Juntos, plantávamos, colhíamos e vendíamos quiabo, feijão, cebola, alho, vagem, jiló, berinjela, etc. Começamos a criar carneiros... Tudo bem que se meu pai estivesse escrevendo aqui ele diria que ele e minha mãe fizeram tudo isso sozinhos, mas sabemos que não foi bem assim. Ele sempre escolhia ouvir os outros e valorizar os outros. Nessa época nenhum respeito era declarado ou praticado. Era um exemplo.
As plantações foram substituídas pelo cafezal, plantado em conjunto, ainda que meu pai diga que foi ele só quem o fez. E os carneiros desapareceram porque nada deu certo. Em seu lugar apareceram os porcos. E nós continuamos juntos reclamando, brigando, nos odiando, mas juntos. Até o dia em que eu resolvi comprar um apartamento e tentar outra fórmula, a de viver sozinha. Mas não adiantou, todo final de semana estava em casa. E todos os dias que não estava em casa, estava pensando por que não estava em casa. Veio a demissão de outra faculdade e mais uma vez eu rapidamente voltei pra casa. Mas tinha vontade de ir pra outro país. E isso eu só faria se pudesse arrastar comigo a família inteira. Ninguém poderia ficar pra trás. Nem meu irmão que agora pertencia a outro país. Claro que não deu certo. E eu estava em casa de novo, com meu pai reclamando e minha mãe discutindo, meu irmão mais novo dando trabalho e o mais velho dando ordens de longe. Era a minha escolha.
Viramos cafeicultores de respeito porque meu pai é muito dedicado a tudo. E, de nenhuma experiência, passou a ser referencia. Estávamos descobrindo juntos. Assim que teve condições financeiras, meu irmão voltou de onde estava pra passar férias. E isso se repete a todo ano porque ele por motivos especiais faz questão de estar em casa durante 2 meses por ano só pra ouvir meu pai reclamar, minha mãe enlouquecer, meu irmão resmungar e ver minha cara de mau humor e minha vida corrida. É uma escolha. E quando não está aqui, está ligando todos os dias como se entrasse pela porta de casa sem voltar.
Os porcos sumiram e em seu lugar vieram as galinhas, meu pai insistiu em assumir tudo sozinho talvez só pra aproveitar nossa proximidade pra reclamar. Depois de tantos anos, deu pra perceber que ele gosta de estar junto tentando separar. Ele é assim. Uma escolha. Mas estamos juntos. Ele deixou de sair de casa literalmente, por escolha. Mas eu não acho que devesse ser assim, pois não foi muito saudável, uma vez que ele se trancou num isolamento rabugento.
Agora, de cafeicultores-referência, viramos juntos, feirantes montando e desmontando barraca toda quinta-feira. Lá vendemos café em pó, café espresso, e pensamos em oferecer também queijos, bolo, pães. Juntos, eu pai vai lá pra reclamar, ler revista e conversar. Minha mãe vai pra organizar e trabalhar. Meu irmão vai pra trabalhar e tomar conta dos negócios. Eu? Eu vou pra dar palpites, ajudar, resmungar, ler, escrever, ver e viver.