domingo, 27 de março de 2011

A árvore e eu. A árvore ou eu?

Era uma vez uma pequena mudinha que estava ansiosa para descobrir-se fora daquele pequeno saquinho preto que guardava suas delicadas raízes, impedindo-as de encontrar um solo que a fizesse enxergar-se grande como todas aquelas que lhe pareciam ser parentes próximas. Chegando finalmente o dia em que seria colocada no chão, sentiu-se transplantar para um espaço amplo, bem em frente a uma casa de muro baixo por cima do qual poderia acompanhar o dia-a-dia de seus cuidadores, ao mesmo tempo em que poderia distrair-se controlando o vai-e-vem dos carros e dos pedestres da rua do outro  lado a qual era pequena, sem movimento, mas que passava bem em frente a um clube que sempre se agitava aos finais de semana, com a chegada do sol e da folga merecida dos associados.


A seiva que corria em seus pequenos vasos era capaz de distribuir o alimento trazido da terra com a água que lhe era oferecida quase que diariamente. Suas raízes estendiam-se cada vez mais e ganhavam força, sustentando o caule que crescia em altura e diâmetro, dando-lhe forma e indicando que ela seria mais uma daquelas fortes, altas e frondosas. Tudo que ela poderia esperar de uma boa árvore.


Com os meses e anos correndo, viu seus galhos esticando e cada vez mais originando ramos que se enchiam de folhas miudinhas, numerosas, verdes-brilhantes, que não se esqueciam de aparecer desde o mais firme até o mais fraquinho e distante. Nada em seu desenvolvimento lhe passava despercebido, pois era uma festa notar-se grande, capaz de receber em si os pássaros que, apesar de não encontrarem nela frutos que os alimentassem, ali sentiam-se à vontade para formarem seus ninhos ou pousarem seus cansaços. Todos os dias, amanhecia e adormecia na algazarra de cantos que se espalhavam principalmente na época das flores amarelas que ela via enfeitando toda sua vasta cabeleira. 


O tempo foi passando e o muro baixo foi trocado por um outro bem mais alto de maneira que a casa da qual ela era parte não mais podia ser acompanhada. Eram agora duas coisas separadas. Também o solo onde havia sido plantada se transformou em uma larga calçada de pedrinhas amarelas e azuis e ao seu redor foi colocada uma pequena cerca, um murinho que lhe reservava o direito de alguns palmos de terra. Ainda bem que suas raízes estavam firmes bem abaixo disso. A nova gola apertava apenas um pedaço de seu caule, ali embaixo, como um sapato novo nos pés de alguém que andou descalço por toda uma vida. Mas o céu ainda estava lá em cima, bem onde também se encontravam suas folhas, suas flores e seus pássaros.


A rua estava muito mais movimentada. Carros mais rápidos e pessoas mais apressadas agora passavam sem poderem ser contados, controlados ou escutados. As caras estavam fechadas e a alegria da vizinhança já não era mais a mesma. Poucas pessoas apareciam no clube. As casas ao lado da sua foram gradativamente sendo substituídas por lojas e, de repente, quando os cabelos daqueles que a trouxeram ali embranqueceram, ela começou a entender-se mal vista.


Repetidamente, algumas mesmas pessoas começaram a visitá-la com frequência para cutucar o grande buraco que havia se formado em seu caule. Mas eram coisas da idade! Colocaram ali uns líquidos e depois uns pós, substâncias que lhe causavam um incômodo, uma sensação esquisita de pânico. Descobriu que isso estava acontecendo porque alguns insetos haviam aproveitado o caminho aberto por suas raízes para invadir a casa de seus benfeitores. Eram cupins que, aos poucos minaram suas barreiras e a usaram para alcançar seu objetivo único de sobrevivência: o alimento lá do outro lado do muro.


Então, ela, a ávore trazida há muito anos para embelezar o caminho, era agora responsabilizada por alguma coisa que nunca havia imaginado ou pretendido. Ao colocarem ali suas finas raízes, seus plantadores não se preocuparam em pensar no seu desenvolvimento nem na necessidade de orientarem suas longas e fortes raízes que, ao crescerem, iriam longe buscar a vida que seria transformada em folhas e flores. Não. Eles, que deveriam, não olharam para o futuro. E o futuro se transformou no hoje em que as portas e os armários de madeira foram destruídos e as paredes foram infiltradas.


E nesse futuro tão presente ninguém mais conseguia olhar para ela e ver sua sombra ou suas flores amarelas de primavera decoradas pelas aves felizes que ali continuavam a desfrutar de tranquilidade. Ela passara a ser a causadora de um problema que sozinha não podia ter evitado, pois a natureza só havia lhe ensinado a ser ela, uma árvore. Entendeu que isso não seria suficiente para garantir-lhe a existência até cumprir sua jornada como suas antepassadas. Seria uma questão de tempo seu corte e a eliminação de suas famigeradas raízes. Uma surpresa traiçoeira que atravessaria seu caminho, independente de tudo aquilo que pudesse explicar, se pudesse ser entendida. As aves, o vento, os pedestres, todos passavam por ela, olhavam para ela, mas ninguém podia sentir ou dividir esse medo, a angústia de esperar a serra passar através de seu caule.


Ninguém, a não ser alguém que havia se transplantado e permitido que suas raízes se instalassem em pouco tempo num solo que considerava fértil. Esse solo era ali, numa escola bem do lado de seus raminhos mais distantes. Seguindo o exemplo da verdadeira árvore, as raízes humanas que se desenvolveram procuravam tirar de seu canteiro  muita alegria, estimulando galhos firmes a receberem com carinho e honra os muitos amigos que cantavam por entre as cuidadas flores que se esforçavam pra enfeitar e vibrar o ambiente com a melhor das intenções. Da janela no ponto mais alto da tal escola, esse alguém também mirava o céu agradecendo a oportunidade de existir ali e de repartir cada um de vários dias com aquela velha árvore frondosa, cheia de energia e de exemplo.


Algumas raízes continuam lá, olhando para a rua, para os pássaros e para o céu azul. Outras não.

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